A dois passos
A Dois Passos
1.
Acordara cansado, talvez pelo dia de ontem, não sabe,
mas sentia-se cansado sem vontade de nada fazer, apenas ficar em casa.
Olhou em volta e no meio daquela pequena divisão
ainda dormiam os seus dois filhos, serenos, como que santificados e alheados
das dificuldades da vida dura que lhes levava o pão à boca.
A sua companheira já tinha partido, fazia pelos
Passos dois anos, e nunca mais conseguiu ser o mesmo, os filhos notavam, embora
pequenos, a quebra da força que sempre acompanhou e impulsionou o pai.
Mas tinha de reagir, afinal não foi isso que sempre o
motivou a sair de casa, descer a ladeira da Pederneira e trabalhar na praia
junto dos colegas que tinha, embora nem todos fossem seus amigos?
Para que é que um homem quer amigos quando não tem a
sua companheira, quando vê a sua vida desmoronar-se de um momento para o outro?
Mas, naquela manhã, as coisas eram diferentes, a sua
força parece que o tinha abandonado definitivamente, sentia que mais nada nem
ninguém o podia ajudar, nem mesmo o amor que sentia pelos filhos e, no extremo,
a Senhora da Nazaré, a quem pedia todos os dias pelos filhos, pelo pão que haveria
de vir desse maldito mar.
O filho mais velho acordou, com 14 anos já percebia o
que se passava, e bastou olhar para o pai para perceber que mais um dia de
escuridão se tinha abatido na sua alma.
Nada lhe disse, apenas o olhou, de frente, e sentiram
os dois, aquele sentimento de saudade, de falta, mas que podiam fazer contra a
determinação de Deus?
Alguns minutos mais tarde acordou o mais novo, seis
anos, quatro deles com a mãe, os menos memoráveis, aqueles que se recordava
como se estivessem envoltos numa penumbra, apenas a fotografia numa moldura em
cima da cómoda do quarto o fazia lembrar de pequenas coisas.
Em silêncio continuaram a fazer a sua rotina matinal,
um pouco de pão e leite da vizinha, que tinha duas vacas na sua horta e dava de
leite à maior parte da população, pouco, mas lá se ia aviando, a vizinha e os
clientes.
Naquela altura a Pederneira era uma terra deserta,
sem almas nas ruas, mas com muitas no cemitério, sempre esse caminho, o caminho
que percorriam todos os dias sem falta, para visitar o chão onde se encontrava
a mãe.
A escola era mesmo ao lado da casa onde viviam - num
velho edifício que servia para os homens da câmara tratarem dos assuntos da
terra - e o mais velho, que já a tinha abandonado para ajudar nas despesas da
casa, levava o irmão, esperança da família para que o futuro lhes fosse mais
risonho.
Depois voltava e juntava-se ao pai na caminhada para
a praia onde iriam passar o dia até voltarem, mais tarde, para a sua casa.
Não havia distracções apenas o trabalho e a casa.
O pai esperou que o filho chegasse de levar o irmão à
escola para o arrastar para baixo. A muito custo, porque a alma prendia-lhe os
movimentos; lá foi, a necessidade falou mais alto no início de mais um dia que
não estaria destinado a ser, assim ele se pudesse dar ao luxo de ficar na porta
da sua casa a olhar, bem de frente para a torre da igreja matriz e esperar que
as horas passassem às badaladas do sino.
O caminho foi feito em silêncio, nem uma palavra,
apenas pensamentos que assaltavam os dois. Um pelos motivos da perca, por não
perceber porque Deus lhe tinha tirado a sua companheira, outro, a pensar porque
tinha um pai distante e uma mãe que não sobrevivera a uma doença sem cura,
apesar do médico da terra ter feito de tudo, e sem saber, eles terem recorrido às
práticas tradicionais para afastar aquela terrível doença que consumiu o
outrora vivo corpo da mãe.
Já não havia nada a fazer, a não ser recordar.
No areal, já labutavam as pessoas, elas, eles, as
redes, os barcos, os bois, tudo era movimento, tudo era barulho, nem o barulho
do mar se conseguia ouvir com o barulho da areia pisada e repisada por tantos
seres.
Todo aquele rebuliço incomodava-o, aliás sempre disse
à mulher que não era feliz no mar, mas em terra.
Foi na terra que cresceu, onde apreendeu a cavar,
sachar, plantar, tudo com os avós e com os pais. Eram todos da Pederneira e que
se saiba, nenhum foi pescador.
Agora sem a sua mulher, sentia uma vontade enorme em
deixar aquela vida e voltar acima, ao campo, à pequena horta que tinham, lá
para os lados do Vau, mesmo ao lado do velho cemitério.
Tinha de tomar uma decisão, tinha de estar perto da
sua mulher, pensou. Quanto mais depressa pensou mais depressa o fez.
Agarrou o filho pelo braço e, sem nada dizer,
inverteu o seu destino arrastando com ele o destino do filho, o destino de três
vidas.
Um homem tem de tomar decisões e a única força que
ainda lhe restava estava virada para terra e não para o mar. Desse estava
cansado, nem o podia ouvir murmurar ao longe, mesmo quando estava em casa.
Subiram novamente a ladeira e chegaram à Pederneira,
o filho não sabia ao que ia, mas não perguntou. Deixou-se ir como se de uma
sentença se tratasse e nem pestanejou perante a força, estranha, do pai.
Parecia que tinha sido possuído por uma vontade
estranha, por um chamamento, mas não, apenas seguia o seu instinto, levado pela
proximidade e pela vontade de não mais pisar aquele areal. Queria outras
areias, mais duras, mais castanhas, mais perto.
Dois passos chegavam, desde que o levassem onde jazia
a sua mulher. Era a dois passos que tinha um pequeno talhão de terra, era a
dois passos que iria reconstruir a sua vida e dar aos filhos, aquilo que mais
desejavam, um pai.
Parou, olhou em volta apreciando a paz, a calma e o
trabalho que o esperava até ter aquela terra pronta para a sementeira. Olhou
para o filho e como se lhe dissesse com as palavras todas do mundo aquilo que
lhe ia no coração, apertou-lhe a mão e chorou de alegria, de orgulho, e deu
graças a Deus por ter o seu filho com ele, aquele homem a formar-se.
Cedo iria chegar a hora de almoço, o irmão mais novo
estava na escola, mas era perto, a dois passos.
Almoçaram aquilo que havia para almoçar, pouca coisa,
já estavam habituados a pouca fartura, mas a alma alimenta-se com a fé, dizem
os que a professam, e eles acreditavam e isso era o suficiente.
Não esperou muito, disse para o mais velho para ir
ter com ele à terra, ali a dois passos.
Meteu-se ao caminho, curto, ao passar pela matriz e
pela Misericórdia, benzeu-se, apenas, sem palavras interiores agradeceu a luz
que se tinha feito na sua vida, ou talvez, quem sabe, a ilusão que estava a
viver. Não se incomodou, por enquanto, com o facto de a terra ser diferente do
mar, sempre tinha o mercado e um homem não come só peixe, batatas também são
precisas.
Os outros estavam já nas suas tarefas, semeando as
suas terras, mas eram-lhe estranhos, embora os conhecesse a vida inteira, mas o
estranho era ele, por ali àquela hora, com uma enxada às costas?
Perguntavam-se os que o viam passar, em silêncio,
faziam todas as perguntas, mas nada lhe dizia, sabiam aquilo que lhe ia no peito,
e não diziam, não falavam, mas respeitavam as suas condições, a sua condição.
Tanta memória que a mulher lhe trazia, era nessa
memória que se ia apoiar para ferir a terra, para a fazer sangrar o pão para
comer, era essa terra, a dois passos, que reavivava a mulher, afinal era o que
ela fazia durante o tempo em que andou no mundo dos vivos.
2.
Começou. Limpou todo o terreno, já com a ajuda do
filho mais velho.
Lixo, mais lixo, tudo fora. Aquele terreno estava sem
ser mexido desde o último dia em que a sua mulher lá trabalhou, as coisas que
ela tinha estavam arrumadas no mesmo local que ele sempre conhecera e por lá se
iriam manter após o trabalho.
Um santuário era o que era, a dois passos da mulher.
Assim pretendia continuar a tratar da terra, do santuário.
Meteu as mãos calejadas pela vida do mar no cabo da
enxada e a primeira machada foi como uma libertação, uma fusão de raiva e
contentamento, tinha encontrado a sua alma a dois passos de tudo. O filho, a
seu lado, ajudava-o.
Rapaz forte, trabalhador e lutador, como o pai sempre
o foi e a mãe o cultivou.
Os dois sozinhos, assim, na terra sentiam-se bem,
desbravando aquelas entranhas que a mãe tinha deixado secar com a sua ausência
deste mundo.
Era uma pessoa conhecida, popular, nascida e criada
no meio agrícola, filha da Pederneira, que sempre resistiu às tentações de uma
praia cheia de gente, como se corresse ouro pela areia.
Manteve-se ali, junto à sua terra até ao último dia
em que as forças a deixaram cravar uma enxada na terra dura.
Ele pescava, ajudava, ao fim do dia, em casa, eram as
conversas dos outros e deles que animavam o serão à volta dos pratos colocados
no chão.
E assim se passaram duas dezenas de anos de
convivência, assim se escreveu uma história, assim se fez uma família.
Um dia, de volta a casa, a mulher queixou-se de uma
dor nas costas, coisa pouca, mas que a apoquentava. Não ligou e disse-lhe que
era do trabalho, que eram muitas horas sempre agachada e a cavar.
Acreditou, era possível, porque não?
Mas a dor, dia após dia, piorava e não a deixava ter
força, quebrando-lhe os movimentos.
Não durou dois meses e morreu. Com ela morreu uma
casa e, na casa que ela habitava ficavam agora, três vidas por viver.
A morte de um ente querido deixa estas marcas, sempre
sentidas embora diferentes na forma de sentir, mas a dor, essa não se esvai.
A contra-natura da morte custa mais, mas a morte de
uma pessoa jovem com uma família para criar, também tem a sua conta de dor. A
morte, se pudéssemos escolher não existia.
Mas aquela existiu e continua a sentir-se no seio
daquela família.
Após a hora da morte da mãe, foi o filho mais velho
que pegou nos irmãos e o levou para casa do vizinho.
O pai, avisado, quando estava a trabalhar na praia,
não soube como chegou à Pederneira. Nada que não se estivesse a preparar. Via a
sua mulher a definhar, dia após dia, mas a morte. A morte, essa não. Como se
lida com a morte, não se sabe, só quem passou por momentos destes, é que sabe
como se lida com a morte de alguém jovem, querido e um pilar de uma família.
Chegou. Várias pessoas estavam à porta, de cabeça
baixa, ainda assim o olhavam pelo lado superior dos olhos, sem mexer a cabeça.
Nem uma palavra, apenas suspiros, ais silenciados, nada mais.
Quando entrou notou um cheiro diferente, um cheiro a
morte, existe esse cheiro, mas continuou em frente até ao pequeno quarto.
Passou-se tudo naquele momento, o choro, as
lembranças a impossibilidade de ser ela, tudo, tudo se passou, mesmo a razão de
estar ali.
Mas não. Era tudo verdade, era ela que estava ali
deitada, coberta por uma colcha branca, colcha que o tinha aconchegado a ele e
a ela nessa mesma noite, antes de ir para a praia trabalhar, aquela cama, onde
trouxeram ao mundo os seus filhos, tudo, mas tudo, era agora um espaço
diferente um pouco mais escuro, sem brilho, sem importância, sem história.
Aproximou-se da sua mulher, olhou-a, fixamente, não
nos olhos que esses estavam cerrados, mas na face e percorreu todo o seu corpo,
oculto pela coberta branca, como se lhe estivesse a tirar as medidas, como o
fez na primeira vez que a viu.
Mas agora era diferente, a despedida daquele corpo,
daquela voz, daqueles olhos, dela, era agora uma realidade. Isso, ele não
poderia mudar.
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